segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

ASSINATURA

ASSINATURA

Para Denise Ayako Yamashita

um dia serei velho
velho homem velho
de sensações brancas

memorial de tudo visto
de todo sentidos
alvo de emoções
que também serão brancas

tez da manhã azul
profundas como orgasmo na Serra
silenciosas no canto dos pássaros
no vôo impreciso dos insetos
que vêm e vão sem saber

um dia serei velho
velho homem velho
exposto no tempo
como pedra exposta na pele da terra
cumplicidade assinada com sangue

SETTING

SETTING

teu fogo-albatroz
incendeia minha língua
de fogo voraz

teu vulcão chama
meu tótem de luz
lavas oceânicas
sobem ao zênite-gozo

reluz o ponto zero
meu verbo lampeja
teu relâmpago-corcel

trovões se cruzam no silêncio:
tao, satori
lâmpada exposta
no edifício fugaz da palavra.

TRANSGIRO

TRANSGIRO

para Sohl Cabanas


O girassol, em sentido contrário
dança, entre os dedos da sombra,
a sequência mínima dos ventos.

O girassol desobediente quer a lua,
esse sopro andante de ausência,
atração gravitacional permanente.

Passeio inaugural de verso não escrito
o girassol grita dentro da urbe caipira:
caminhos são mapas da pele desdita.

O sol em gira colhe sozinho
sangues de pátrias estrangeiras,
enquanto rios correm águas sem fronteiras.

O girassol janeira dezembros
esses meses siameses,
soprados pela língua do tempo.

Memória marinha do vento,
registra a rotação de sóis girantes,
para um pouco além da eternidade.

TESTAMENTO

TESTAMENTO

Nunca fui bom partido
quero o ponto de partida
como princípio e não fim das coisas.
Quero egos e eus partidos
narcisos quebrados:
ir semiótico sem fim.

domingo, 20 de janeiro de 2008

LOVE RÉQUIEM

LOVE RÉQUIEM

Ou Diário de Uma Separação

Para Cristiane Mota

Ferriól Cabanas


a memória reflete no espelho
o estado de lembranças mortas:
um passado construído sobre coisas e nomes
que pouco-a-pouco vai ficando abandonado
num velho pacto de anos atrás

a viagem inesquecível a dois
fotografa as imagens perenes
que não guardam mais o caráter virginal,
porém desenha o vento gelado da cordilheira andina

o tempo muda o jeito de sermos únicos
onde permanecer juntos é menos que viver
é continuar náufragos de uma intimidade
que não tem mais nenhuma importância

o amor ficou preso na felicidade estrangeira
e nos transformou em meros fantasmas ambulantes
abandonados no site de um tempo inalcançável
que encarcerou a culpa da sensibilidade aguçada

a recordação do sexo, feito tantas vezes,
ergue um templo exclusivo da repetição
dói imaginar visitantes bárbaros
nos lugares sagrados da peregrinação
antes realizada somente por dois viajantes habituais

os diálogos interiores da separação consomem o dia-pós-dia,
as intermináveis perguntas sucedem-se velozes
intercalando a necessidade urgente de partir
e o antigo desejo de permanecer um pouco mais,
como despedida ainda sem data marcada

mas na hora derradeira desta eternidade personalizada,
me transformo em assassino de mim mesmo
planejo o enterro de nossa herança póstuma
enquanto os coveiros imutáveis do tempo
fazem sua reverência sacrílega
ao som de um love réquiem tocado no vento

sábado, 19 de janeiro de 2008

COSMOS

COSMOS

Para Jovina Maria


Na ponta dos dedos
cosmologia inédita inaugura
um tempo particular.

Cidadão de teu território
toco a tela de arte submersa:
tua pele eriçada.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

ENCONTRO EM SAMARRA

ENCONTRO EM SAMARRA
Ferriól Cabanas

Uma atração não precipita acontecimentos com ações planejadas, mas sabe-se que o inevitável sempre acontece, invariavelmente. Como aquele Encontro em Samarra, escrito há mais de mil anos.
Duas pessoas vão se encontrar para um ato de amor. Mas continuarão vivendo seus dramas pessoais, em silêncio, porque não podem contar com a compreensão da sociedade, da igreja, da moral vigente naquela cidade fria do sul de qualquer País.
Professora exemplar de matemática, Ariadne tinha sonhos recorrentes, onde ela sempre aparecia nua para seus alunos enquanto dava aulas enquanto dava aula, quando preparava uma atividade qualquer ou mesmo quando contava histórias de fadas, exibia suas formas perfeitas. Em outro sonho, que está num clube e tira toda a roupa para entrar na piscina. Em outro ainda, que voa no ar, fazendo piruetas. Notável observar que, para ela, tanto em sonho, quanto fora dele, a nudez é muito natural e para todos os que lhe estavam próximos.
Esses sonhos se tornavam cada vez mais presentes no seu imaginário emocional, na mesma medida em que seu casamento se desfazia, uma ligação onde se sentia prisioneira de um marido ausente e insensato: deixar uma esposa cada vez mais abandonada num Chat de bate-papo na Internet, o seu refúgio mais constante e, paradoxalmente, cansativo, repetitivo, vazio. Ela queria apenas conversar com alguém que preenchesse, só um pouquinho, a sua cela gradeada pela mesmice mundana. Que mudasse o cenário de sua visão, que a livrasse da síndrome da pantera de Rilke.
Mas daquela vez ela acessou o Chat com um pré-sentimento. E assim ela vê seu nick-name aparecer na tela azul do computador:
13:09: 26 Camaleoa entra na sala:
13:12: 19 Winner entra em sua vida.
Sentiu um arrepio percorrendo as paredes desconhecidas de seu ser incompleto. A conversa foi evoluindo, envolvendo-a como se Ariadne já fizesse parte do contexto daquele homem, há muito tempo: “Nossa, o cara tem personalidade, é culto, inteligente, com um quê de sábio e filósofo... pensou ela. Percebeu que ele não falaria em sexo até que ela colocasse o assunto na roda da vida que eles iniciaram naquele breve interstício de tempo virtual”.
A sorte estava lançada. Como disse Khalil Gibran: “O amor não tem outro desejo senão consumar-se”. E assim começou a ser embora nenhum dos dois soubesse o que o destino inevitável já havia preparado para eles. Como duas personagens, começaram a escrever sua própria história.
Salouste, um homem maduro, viajado, estudado, vivido, com experiência internacional, escritor, poeta, tradutor, de negócios. Também entrava na Internet, em busca de uma mulher interessante, mesmo sabendo que isso seria raro de acontecer. Mas mesmo assim, tentava sempre. E quando ele viu aquele nick-name Camaleoa, logo percebeu que era um ser que adotava o caráter segundo seu interesse mais sincero. Mal sabendo que esse contato fortuito e improvável de uma sala de bate-papo virtual o levaria a viver a mais intensa e profunda experiência de sua vida.
A conversação fluiu corriqueiramente no início, mas aos poucos os levou ao ponto de não perceberem mais onde estavam e nem de como haviam se encontrado. Pareciam conhecidos de longa data. Uma química, uma cumplicidade, uma interlocução se instalou entre os dois. Eles jamais poderiam sequer imaginar onde esse encontro os levaria. Ao nada absoluto das coisas. Apenas ao que vieram. Mas não sabiam.

AGRADECIMENTO

AGRADECIMENTO

Ferriól Cabanas

Todo o dia pela manhã, ao acordar, agradeço a Deus primeiramente pela saúde mental, porque de nada serve uma saúde física, se não temos uma boa cabeça para gerir nossa vida. Agradeço ao meu Pai pela saúde emocional, porque ela é mais importante que a do meu corpo. De nada me serve qualquer saúde se não tenho equilíbrio emocional para amar verdadeiramente. Digo obrigado a meu Superior pela dádiva de ter saúde física. Depois de tudo agradeço a saúde espiritual.
Tudo comedidamente. E me sinto privilegiado. Inteiro. Pronto para começar o dia com o potencial de vencer, de ser guerreiro, de conquistar, de fazer e realizar.
Em seguida falo com meu Paizão pela dádiva de possuir um teto para morar, um carro para o transporte cotidiano e todas as oportunidades de trabalho que já tive, que tenho e que sempre terei porque sou um trabalhador incansável.
Feito isso digo profiro um muito obrigado também pelo futuro maravilhoso que me foi preparado. Agradeço o passado rico em experiências e conhecimentos que me prepararam para ser melhor a cada dia e que me trouxeram até aqui, até o agora.
Agradeço pela inteligência que tenho, pelos conhecimentos adquiridos, pela cultura agregada, pelos estudos feitos, pelos escritos publicados, pelo dom de escrever, pelas viagens feitas, pelas línguas estrangeiras estudadas, às viagens, às aventuras unipresentes de cada vez.
Dou graças aos amores que já tive, aos filhos que tenho.
E ao único amor incondional presente e imortal.

ENSAIO FRENTE AO LONGE

ENSAIO FRENTE AO LONGE

Para Cristiane Mota

Sinto-me comprimido entre o passado que você teima colocar no presente como compulsão que precisa ser retocada.
Ao menor aceno de um dejávù e seus sentidos se tensionam em confusão e não adianta discussão ou tratativas engendradas no silêncio para demover intentos.
No entanto vejo um futuro empobrecer-se sem a justa defesa.
De que valeu toda busca e andança para o refinamento do espírito, da emoção e da sensibilidade, ou o desprendimento das coisas, o escárnio à banalidade, em favor da sapiência e da agilidade para a interlocução.
Tudo senão para estabelecer a sintonia necessária.
Sinto um vazio inexplicado, buraco que se agiganta, que só diminui quanto me dizes um reles amore.
Alegria me inspira mas não é sopro de vida longa.
Sem muita fala, lacônico, visto a roupa de um clown estrangeiro.
Ao mesmo tempo em que penso a felicidade tão possível e sem necessidade de espelho.
É do longe que me vem o re-ânimo.

SINFONIA

SINFONIA
Ferriól Cabanas

A SINTONIA FINA ENTRE DUAS PESSOAS
RESSOA A SINFONIA DA PRÓPRIA VIDA
ENTRE QUATRO PAREDES
DA GALÁXIA MAIS PRÓXIMA
DE NOSSO DESTINO.
UM SOPRO DIVINO INAUGURA
UM NOVO DIA, TODOS OS DIAS.
ENSAIA OS PRÓXIMOS MOVIMENTOS
DE UM TEMPO INDEFINIDO,
INSCREVE NA TEXTURA DO ESPÍRITO,
UM FRÊMITO, UM GOZO.

O SILÊNCIO DO SILÍCIO

O SILÊNCIO DO SILÍCIO

Ferriól Cabanas

Sinto-me neo Raskolnikow, numa noite afastada de Deus, matando uma usurária sem pena, sem testamento, sem escrito.
A morte chega exangue, mas inteira nas palavras que retiram o ar dos pulmões imortais.
O fio de saliva se interrompe sem pedido de licença. A troca fica sem completude. Apenas o gosto de uma diversidade inacabada, de superficial sabor, recuperado de uma memória quase plausível, que ensaia um passado construído no tempo virtual.
O maior fracasso de um homem é ser usado como pano de fundo para um teatro de absurdos. Nesse palco o protagonista cai no fosso do contra-ponto de si mesmo, como catedral construída na ilusão e na prestidigitação das frias teclas de uma rede invisível, como quasímodo caricatural medido em seu esforço inútil, agonia de não saber ou de não ter vivido com profundidade um amor desenhado nas páginas da Internet.
Mas a interlocutora mal sabe que é possível sim começar um romance derradeiro nos interstícios do tempo virtual.
No entanto por ultimato de seu próprio reflexo ela rirá um dia da solidão de um amor projetado no imaginário, um amor que reclama herança não construída, história negada por inaptidão ingênua.
Transdimensionalmente o poder agora se concentra no dedo indicador, a nova versão do veredicto, o punhal pontiagudo iluminado pela tela azul deste tempo mais que moderno, que leva o romance mínimo para dentro das casas e dos escritórios. Um dedo suspenso no ar, como antigos Césares decidindo vida ou morte no silêncio do computador. O prazer solitário se consuma na arena onde luta o gladiador volátil, assistido por um só espectador armado de sua webcam adestrada. Um gladiador que sempre vence, para a própria tristeza dos protagonistas. Porém no afã de sair ileso, leva consigo o sabor de uma vitória sem nexo, perdida em sua imaginária peregrinação que sempre se repete no maior cenário do Planeta, onde se imprime a maior platéia de seres acompanhados e, ao mesmo tempo, solitárias. Como Sísifo incansável rolando sua pedra. Sem parar. Sem nunca atingir o topo de sua realidade. Como um fugitivo, errante de si mesmo, um homo sapiens repaginado, em duas versões acabadas de sair da oficina de carne de um deus desorientado, eles procuram linimentos para suas dores nos buracos negros da Internet, mal sabendo que dentro de si mesmos reside toda uma galáxia possível. O homem e a mulher viajam centenas de quilômetros para contemplar o mar, sobem altíssimas montanhas para sentir o vento puro de um amanhecer impossível, descem desfiladeiros, crateras, profundidades, mas esquecem de uma grandeza irrealizada, assassinada dentro de seu próprio self.
Olvidam-se que os sobreviventes do dilúvio original entraram em pares na velha Arca de Noé, Porque assim a vigília e a viagem se tornariam mais amenas, mas no entanto cada parelha seguindo com sua pertinente velocidade.
Amores impossíveis nascem e desaparecem rapidamente na criação de fantasias e metáforas surgidas nos nós górdios em que se transformou essa busca da realização afetiva teclada, desde o vilarejo mais distante de uma Rússia ocasional, até a vilazinha esquecida à beira do mar mediterrâneo ou do mar que banha a Terra do Fogo ou de uma metrópole já existente ou ainda em formação. Um romance moderno começa e termina em frações de segundos. E nesse meio termo celebrou-se amor, sexo, discussão, morte, ódios, gozos, pacificações, novas filosofias , traições.
Paulo Coelho não é uma grande revelação literária. O conteúdo do que ele escreve é que faz sucesso. Ele relata justamente a busca do amor incondicional, do amor absoluto. É isso que o ser humano está buscando hoje, com muito mais intensidade. E não acha. Mas pratica nas fáceis páginas da Internet, nos chats, nos sites de relacionamento.
Buscam-se tesouros impossíveis no fim de arco-íris sem pátria, e sabe-se que nunca serão encontrados. Porque o tesouro está dentro de nós. Muito poucas pessoas sabem disso.
Tudo que os helênicos não entendiam, transformavam em deuses, lendas ou odisséias. Mas se vivessem hoje, com toda aquela intensidade voraz e assaz de inaugurar o novo, teriam ficado loucos, todos de uma vez. Porque essa imensidão imensurável da Internet nos consome em mistérios ainda não inaugurados.
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
A perda maior neste tempo nada simbólico é o estrangulamento diário das atitudes sem medidas, pelos gestos impensados, do comportamento distraído, da história improvisada, do sexo impulsivo, mas o mais cortante é a maldicção proferida pela voz fria e nervosa de um computador.
Masculina é a emoção que dilacera o sentido, e aguça o avesso do aço e vigora o silício de uma nobreza extinta.
Feminino é o sentimento grávido de uma constelação afetiva diacrônica que não tem nem começo e nem fim, apenas existe.
A gargalhada do que antes era o futuro vira cinza no eco do distúrbio.
De resto resta o estampido na perfeita retina da realidade.
Os fios de salivas desemendados se alternam de boca em boca, na velocidade de um tempo sincrônico.
Hoje somos nós diante do imponderável, frente ao inevitável:
Porque o amor que mal começa a ser construído já está impregnado de um medo existencial. Projeta-se o melhor de qualquer um: foto, idade, renda mensal, status psicológico... Super-heróis da noite para o dia! Mas ao menor deslize, descrença, dissabor, insatisfação, rejeição, opinião oposta, grau cultural diferente, superioridade intelectual... Adeus. Arriverdérci. Adiós. So long. Arigatô. Segundo seguinte o dedo suspenso no ar desce em velocidade irreconhecível: Deletar!
Ou excluir, bloquear, não aceitar...
Quanto amor possível se perde no instante fracionado. Quem está do outro lado talvez nunca perceba que sua cara metade esteve ali entre cabos óticos e bites, que a perdeu no próximo segundo, que se perdeu para sempre.
E assim recomeça sua caminhada de Sísifo moderno.
Tudo de novo. Sem nada de novo. Mas cada dia com mais idade e menos juízo. De causa e de efeito.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

SOPRO

SOPRO

pássaro é forma
que deus toma
na mão da mulher

vôo fértil preciso
que se multiplica
em arco perfeito

a mulher sopra
e a ave de barro
se levanta

um novo deus voa

ferriól cabanas

O LADRÃO DE LIVROS

O Ladrão de Livros

Ferriól Cabanas

Ao abrir a porta, Salouste Ferró deixava entrever fileiras incontáveis de livros, prestimosamente acomodados em prateleiras de sua biblioteca alexandrínica, edições de autores os mais reconhecidos da literatura brasileira e universal, pelos quais nunca havia pago um tostão sequer.
Entrava e, em seguida, trancava-se misteriosamente.
As dimensões físicas do ambiente denunciavam, perfeitamente, o quanto ele se dedicava à sua prospecção compulsiva. Revelavam também o tamanho da casa onde vivia sozinho e solitário.
Todos que o conheciam suspeitavam do excessivo cuidado com que protegia seus compêndios. Porém nunca ninguém nada descobrira.
Nenhuma pessoa, exceto ele e seu cachorro Rubi, adentrava naquele sacrário. Nem mesmo à empregada permitia o acesso, encarregando-se ele mesmo da limpeza da biblioteca, como forma de manter todo ser estranho distante daquele ambiente que tanto protegia.

O descendente de catalãos cultivava maneira peculiar de ler cada um dos livros que vinha colecionando ao longo dos anos, logo depois que se formara em Direito Penal. O exemplar tinha que, necessariamente, ter pertencido à pessoa letrada e intelectualizada, quanto mais cultura tivesse, maior o prazer de sua leitura. A obra deveria ter passado pelas mãos de um leitor definido, pois para Salouste era extremamente prazeroso percorrer o mesmo caminho que outros olhos já haviam realizado no texto, as frases sublinhadas pelo antigo proprietário, as anotações feitas nas margens, que ali figuravam como totens invasores carregados de perversidade, que se transformavam em fontes de frêmitos para o espírito daquele Promotor de Justiça. Dali extraía orgasmos pupilares, um oceano homérico que o leitor, antes dele, havia mergulhado.
Salouste era um bibliófilo, sabia tudo sobre livros, desde a antigüidade até aos dias atuais, quando livros são transportados, de um lado para outro do planeta, pela internet ou num disquete. Dirigia sua leitura para os assuntos de sua prioridade, lia o que acrescentasse valor a seu livre pensar. Estudara a Bíblia, o Alcorão, a Torá, o Talmude, o Tao. Mantinha assinaturas de revistas especializadas, cujas resenhas lhe antecipavam a seleção de suas próximas aquisições. Versado em semiologia, etmologia e semântica, incursionou no campo das línguas estrangeiras, das quais dominava dezenove, entre elas várias mortas como o latim, o grego, o tocariano e o sânscrito.
Tornou-se um mestre da palavra: o puro diletantismo o levou a estudar, formalmente, fraseologia, oratória, filologia, neurolingüística, só para aquilatar seu império, para potencializar ainda mais seu poder de persuasão. Daí que falar, escrever, declamar ou discursar lhe era indistinto: em tudo se saía como um virtuose da palavra. Suas próprias publicações incluíam livros de poesia, conto, romance, ensaio, críticas e traduções.
Ferró, habilmente, havia construído um círculo de relacionamento com outras fontes produtoras de arte, como vasos comunicantes, porém nunca permitira que ninguém adentrasse seu território proibido: a biblioteca. Apesar do enorme sucesso silencioso que fazia com as mulheres, com nenhuma estabelecera uma relação duradoura, pois considerava a curiosidade e a propaganda boca-a-boca feminina um excesso que poderia colocar em risco seu segredo. Muito jovem ainda decidira pelo celibato, embora algumas mulheres insistissem na possibilidade matrimonial, que vez por outra rondava seu cotidiano. No entanto, seu casamento com os livros e, principalmente com o modus operandi de possuí-los era mais forte.
Amiúde recebia convites para escrever artigos, resenhas, críticas e outras interferências, como proferir palestras, seminários literários sobre este ou aquele autor universal, rotina à qual se dedicava com muito afinco. Logicamente era muito requisitado para as reuniões culturais e sociais, mas sua predileção eram os convites para festas ou comemorações familiares nas residências de pessoas cultas, letradas, respeitadas em suas áreas de atuação, principalmente aquelas que publicavam livros, tanto autores quanto editores, pois ali residia o cenário principal de sua atividade desvirtuada.
Era, via de regra nesse momento que elegia sua vítima. Avaliava-a a partir de seu contexto social, cultural, familiar e profissional. Muito contava o modo de falar, a capacidade de síntese, as citações das quais se utilizava em suas refregas vocabulares. Enquanto a vítima possível falava, deduzia-lhe a influência de determinado autor, a inferência que um outro, recém lançado, lhe marcara o território virtual da memória. Através do discurso da vítima, Salouste depreendia que livros lera no passado, no presente e dava-se ao luxo de prever que tipo de leitura ainda faria no futuro, inclusive aqueles que nem haviam sido escritos ainda, tamanha era a elasticidade de sua lógica, mas para os quais o magistrado já reservara um lugar em meio à sua coleção errante.
O palco para o exercício de sua atividade subterrânea, era também as livrarias, sebos, hall de editoras, sessões de autógrafos de autores consagrados, vernissages e ainda num lugar pouco provável, mas não impossível, de se encontrar um bom leitor, como o metrô, do qual às vezes se utilizava para ir ao Fórum, onde exercia, com estilo irretratável e brilhante, a promotoria pública de pequenos delitos.
No entanto, era mesmo nas livrarias que detectava o alvo para seu crime perfeito. Achava que nunca seria descoberto, essa hipótese partia do princípio que um livro roubado, de uma pessoa, não configurava exatamente um crime, que ninguém iria a uma Delegacia só para registrar o furto qualificado de um objeto como esse.
Sabendo de antemão qual seria sua próxima “aquisição” entrava em uma Livraria e ficava por ali como quem não quer nada, folheando livros que jamais iria comprar, enquanto aguardava a chegada da vítima premente.
Ela entrava no recinto e encaminhava-se, sem titubear ou perguntar ao vendedor, à estante específica, tomava do volume e procedia o pagamento no caixa, sempre observada pelo nosso ladrão que a tudo atentava. Incontinente, saía no encalço do comprador e, sem se fazer notar, seguia-o até que aportasse em seu destino domiciliar.
Agora, em poder dessa informação mais importante: o endereço do incauto, era muito fácil saber-lhe o nome, a profissão, o local de trabalho, estado civil, antecedentes, grau de relacionamento social, intelectual, bancário ou comercial. Para isso utilizava-se de um site restrito a que tinha acesso como Promotor de Justiça. Assim construía um dossiê completo para ordenar seus movimentos fortuitos.
Por vários dias dedicava-se a mapear toda a afluência, o trânsito geográfico e social os hábitos, bares e restaurantes que a vítima freqüentava que tipo de filmes assistia os estilos de festas que gostava. Enquanto isso seu próximo futuro livro já havia sido desvirginado.
O passo seguinte seria arquitetar o plano de abordagem. Através de seus contatos criava determinada situação onde, fatalmente, seria apresentado à sua vítima, a qual, invariavelmente, sucumbia à verve sedutora de seu algoz, à maestria com que ele reproduzia em suas orações, todo seu saber livresco. Era o canto de sereia que faltava para que caísse na refinada trama que lhe fora tecida.
Agora era uma questão de tempo. Mais dia ou menos dia um convite seria estendido ao engenhoso meliante para que participasse de uma reunião festiva em sua casa.
Salouste aceitava, lisonjeado, o convite, chave mestra para atingir seus desígnios, mas já prevendo arrebatar o objeto de seu lapidado desejo, sem revelar qualquer sinal da pretensão criminosa subjacente.
No dia marcado, comparecia à casa da vítima e participaria, com desenvoltura comedida, da festa regada a líquidos dionisíacos, acepipes universais e das intermináveis batalhas dialéticas, apologéticas, recheadas de réplicas, tréplicas apaixonadas. Esse era o momento em que nosso representante do alheio melhor realizava suas ostentações rasantes e arrasadoras, exibindo seus conhecimentos multiliterários e multilíngües, entremeados de detalhes biográficos curiosos e pitorescos de escritores famosos e de seus interlocutores de época.
A todos encantava. Para cada agrupamento inseria seu exército literal de palavras, alinhavando ora um ora outro autor e as abordagens que mantinham entre si, as similaridades entre as obras, demonstrando as conversações comunicantes que encerravam, independentemente da época em que foram escritas.
Sem perder de vista sua finalidade maior, a festa em seu apogeu, Ferró pressentia que seu objetivo sorrateiro estava entrando em ebulição. A prática o fazia saber o que ocorreria logo em seguida. Assim, o anfitrião o chamava para mostrar-lhe sua biblioteca, e, orgulhoso, desdobrava-se em mostrar, apontar, manusear, exibir os mais variados livros, edições esgotadas ou mesmo apócrifas, obras raras, antigos manuscritos de línguas indo-européias extintas como o sânscrito-védico, o frésio ou, o prácrito. O gentil hostess empolgado com a atenção especialíssima do furtador oculto, recitava trechos de poetas imortais e gênios da palavra escrita.
Salouste comungava, sinceramente, embevecido, de tudo aquilo, pois sentia-se em seu pleno habitat, porém sem deixar de infiltrar-se no sulco de sua matreira intenção: o livro que a vítima havia comprado e lido, o qual estava prestes a ser transferido para sua posse. Sua metodologia subterrânea de surrupiar obras aflorava como um mapa muito bem arquitetado que ele desdobrava em seu genial cérebro. No exato momento em que o anfitrião se esticava inteiro, sobre a escada, para alcançar um palímpsesto egípicio, concretiza seu intento indecoroso, com movimentos precisos e prestidigitados.
Palimpsesto na mão, o catalão compartilhava com a vítima seu conhecimento, explicando-lhe que dois textos haviam sido ali escritos anteriormente e que foram raspados, para receber um terceiro e definitivo, era a maneira que as antigas civilizações encontravam para reutilizar pergaminhos, devido à sua extrema escassez na época.
Salouste explicou a possibilidade de se chegar às escritas anteriores, através de técnicas especiais, por meio de fotografia, com o emprego de raios infra-vermelho, ultravioleta ou luz fluorescente e, assim, se ter o acesso ao texto de alguém que, distante tantos séculos, que bem poderia ter sido um eminente escritor, um filósofo ou um dedicado contador que apagava tantas vezes quanto fossem necessárias os números já prescindíveis de seus balanços, para inserir novos, mal sabendo que o protótipo do papel, onde escrevera, chegaria tão longe no tempo. A vítima, embasbacada, diante de tal erudição, nem percebia os movimentos de seu interlocutor, porém mais uma obra lhe estava assegurada.
O magistrado, agora em poder de seu objeto, concluía o desfile de seus conhecimentos, sem cometer nenhum deslize que ferisse a suscetibilidade ou o curso natural do evento social ao qual era convidado. Despedia-se dos convivas e do anfitrião com muita elegância e partia com a certeza de que muitos dos presentes também o convidariam para futuras festas em suas residências, sabedor que era da vaidade humana. Desta forma seu território de possibilidades se ampliava cada vez mais, dando-lhe a certeza de que sua contumácia iria continuar proliferando a seu bel prazer.
Confirmava-se o fascínio irrefreável que o ladrão de livros exercia naqueles que se compraziam dos momentos emanados de sua turris ebúrnea, fonte divisória do saber e da ignorância.
Já refestelado em sua biblioteca, o Promotor de Justiça procedia a catalogação do volume precioso, ordenava uma breve biografia do antigo proprietário, local e data do ato, em que circunstância se dera, quais as dificuldades encontradas, quais as futuras vítimas presentes no evento, além de organizar uma seleção bibliográfica para suas futuras aquisições.
Finalmente, Salouste tomava do livro, afagava-o, percebia-lhe a textura das páginas, avaliava a gramatura, o tipo e a origem do papel utilizado, o cheiro da tinta, o peso, a técnica encadernatória, a tipologia adotada, o autor da capa e do projeto gráfico, a ficha catalográfica, a editora que o havia publicado e a dedicatória do autor. Tudo isso era minuciosamente consumido no livro, para só então iniciar a primeira leitura, o que fazia com sofreguidão e depois sim, sobrevinha uma outra mais ponderada, calculada, quase fria. É quando passava a apreciar cada palavra, cada sentido, a etmologia, as conotações, denotações, associações, os novos vocábulos, seu uso, pertinência semiológica e todas as inflexões sintáticas que o texto esconde ao senso comum. A tudo ia absorvendo, incorporando, como uma anaconda ao engolir o alimento que, pouco a pouco, também se transformava em serpente.
Impregnava-se todo, do todo que era aquele livro, recém furtado, para reproduzi-lo em seu discurso encantador e encantatório, arma de precisão para a multiplicação de seus próximos delitos.
No dia seguinte, após mais uma noite criminal, envolvido nas atividades ordinárias do café da manhã, da leitura de jornais e do preparar-se para o trabalho, mal percebeu o toque da campainha. A empregada atendeu à porta e em seguida comunicou ao Promotor que dois homens estavam à sua procura.
Uma longínqua suspeita, em frações de segundos, explode na mente de Salouste Ferró, mas sua onipotência e a crença de que sua prática jamais seria punida faz com que descarte qualquer ligação entre os visitantes e seus pequenos delitos.

CARTA A UMA REBELDE

CARTA A UMA REBELDE

FERRIÓL CABANAS

Ela surge da circunstância mundana, como quem se pretende beduína errante, tubo de ensaio efervescente de si mesma.
Ávida degustadora a rebelde mergulha na quadratura de maior fluxo de novidades.
Seu rosto resplandecente, seu sorriso recortado no mistério por trás de si, seu olhar instintivo, pronto para o ataque ou para a fuga. Tudo se prepara para o salto felino da metáfora, do design léxico, do trampolim semiótico.
Como não devorar sua boca falando conversas, línguaviagem enviando mensagens, costurando significados e significantes: troca sintônica de sentidos igual às das peles humanas quando se tocam, como se as palavras ditas fossem dedos percorrendo corpos arrepiados de novidades inaugurais, que não se repetem jamais, como micro-cubos percorrendo poros sem nunca repetir o mesmo roteiro.
A rebelde aparece sob a fronde da árvore frutífera, como cítara de sons e sentidos tocados por uma pitonisa ressuscitada, como estrela dialogal recitando poemas inumeráveis frente ao espelho suspenso no tempo, emitindo sons intransferíveis e solitários, como pássaro interestelar a revelar códigos inacessíveis ao senso comum.
Mal ela sabe que sendo sina imperfeita, caminho de Samarra ou espada de Dâmocles, investe na tentativa de se desviar do encontro, reúne todas as suas armas, tais como facas de inteligência a brilhar em noite de estrelas, sensibilidade refletida na areia da praia que ela própria esqueceu o endereço, sagacidade solar iluminando compêndios. Mas que nada, a água sempre molhará.
Mas mesmo assim, ela caminha sobre os astros, pula sobre eles, brinca, olha para trás e enquanto segue, sorrindo, algas fluorescentes desprendem-se de seus pés, criando sua própria galáxia. A rebelde se diverte, gargalha para si mesma, cristalmente.
No fundo, no fundo, ela sabe. Tem a ciência de que a palavra quer dizer, quer contar, quer relatar coisas únicas, mas teima em querer vê-las, todas, reunidas num só conceito. Tem certeza de que a palavra é dádiva e prêmio, que a repetição e a procura sempre foram necessidades humanas imprescindíveis no dia-a-dia.
Ôh! Rebelde, então não é a palavra que constrói e destrói incessantemente.
- Quantas vezes você mesma ouviu seu próprio nome sendo pronunciado, falado, dito, ciciado, sussurrado, gritado?
- De quantas outras maneiras você espera que seu nome próprio seja anunciado, cravado, como pedra amolada, na memória emocional?
- Qual é a entonação de voz que permanecerá na sua velhice, na voz da paixão, do gozo, do lapso, do amor absoluto? Claro que as construções instantâneas são mais sedutoras, para quê castelos medievais se novos projetos de um world trade center futurista provocam mais mass media do que sentimento genuíno, gerado gratuitamente em algum lugar comum, cuja fonte é inesgotável, só que cada vez mais para muito poucos?
- Sentimento perene, amor volátil ou conflito inegociável do medo de amar entregando-se dia e noite, noite e dia?

No entanto a fênix moderna sempre surge rejuvenescida, usando a palavra como veículo condutor que nos transforma no que somos, desde o primeiro choro, das frases acalentadoras da mamãe proverbial, desde o grito primal até o gemido perdido no futuro.
Somos palavras comunicantes, signos rotatórios em diversão, em diversificação de arranjos, que se repetem em vão, nas torres de babel parabolizadas pelo desejo.
É a palavra, nobre rebelde, que faz com que o futuro seja inatingível, mas também é o verbo que gera a rebelião original contra o medíocre, o médio, o menos é essa articulação signica que trabalha contra as reconstruções de eus mais ou menos irrecuperáveis.
Voraz, a rebelde, translúcida, ouve. Identifica, colhe a palavra, come-a, interpreta-a, captura as virgens e vira-as de cabeça para baixo, sugando-lhes o conceito, o sentido. Depois cai, com sanha, sobre as desconhecidas, como leoa em dia de caça: sangra-as com a sede de querer compreender a vida pelo filtro de uma só entonação de um vocábulo.
Essa especialidade seduz quem está em sua circunferência cotidiana do amor escasso amor das metrópoles. Afinal, quem arde na mesma fornalha, indiferentemente do tempo, da geografia, são dúplices, cúmplices de um vocabulário extinto, apenas dois a se abraçarem no deserto da pólis, esse ambiente que se oferece mercenário aos procurantes do consumo diário: gentes, shoppings, notícias, Internet, sexos transeuntes, conceitos, coisas, gens, vírus, sangues, gêneses e todas as fúteis e vazias insaciedades que os acompanharão até as outras estrelas, se até lá não perceberem que ninguém muda, apenas melhora a partir do conhecimento, do saber, do errante ato de cair e levantar-se sabendo que vai cair de novo e de novo. Mas os dúplices se levantam mais felizes, mais completos.
Andarilhos pescadores de sinais, eles se encontraram no acaso, no caminho da surpresa, sob o pé de uma árvore existencial, que resiste às seduções matutinas dos deuses engomados do glamour, da posse ostensiva, do regurgitar das colunas sociais, já que destino mesmo não se discute e não se burla, mas quem tenta, se desorienta.
E nessa circunstância constróem o ficar verdadeiro, herdando tudo que veio antes: o norte dos pais, amigos, vizinhos, amantes, amados, viagens, línguas, mestres, religiões, ateus, hereges, sacrílegos.
Tudo faz a rebelde ficar verdadeira e nesse afã, erra muitas vezes a direção para onde queria ir: exatamente o ser diferente dos outros, da maioria que vive nessa jaula social disfarçada de paraíso.
Mas ela se reveste de armaduras modernas na busca do amor.
Pouco a pouco descobre que o outro refere, é o contra-plano necessário para organizar as linhas mestras das próprias conquistas individuais, é ele que argumenta, amarra conceitos, alinha pretéritos, contra-argumenta, serve à interlocução, essa indiscreta paixão desoriental. Tudo e sempre com o amor incondicional como plataforma e complemento para todos os vazios subjacentes.
Qual a finalidade da recente antropofagia contemporânea, rebelde, senão o suicídio do imaginário, o desgoverno do imutável abecedário?
Quando pensamos em controlar o norte, crendo-nos onipotentes e gerentes do nosso próprio amanhã, ah!ah!ah!, damos de cara com Deus a nos olhar de soslaio e rir de nossos esforços inúteis, porque Ele já sabe, de antemão, através do eterno exercício de observar a ginástica do homem, abraçado aos séculos, que o resultado é sempre o mesmo, só existe um fim: o ensimesmado gesto ensaiado no corte final da sua eminente extinção, de seu rastro de pólvora sem meio, só começo e fim. Porém quem quer se aprofundar, saber, discutir tudo isso?
Grita, rebelde, pode gritar à vontade, ninguém vai ouvir mesmo. Melhor é entrar logo no segundo ato.
O amor é difícil. Raro. Para poucos. Porque o exercício pleno do amor, do complexo amor, precisa do anteparo: o outro, o objeto para onde emanar o sentimento, que prescinde da sinergia propulsora para a realização de coisas grandiosas, ainda que seja construir monumentos interiores só para os olhos do ser amado, o ser que sabe da necessidade de uma plataforma terapêutica para a elaboração das diárias dores mundanas, o outro que funciona como ouvidos-oráculo das diuturnas queixas humanas, que a todos transforma em ingênuos infantes diante de um mundo patético, repleto da arte do inutensílio.
Engraçado, o outro que a gente quer encontrar é sempre um desconhecido, que, sem ser esperado, cruza a linha do nosso território sem pedir licença, não nos pertence, porém começa a fazer parte do nosso diálogo interior, da fileira de pensamentos que viajam a seu encontro. Esse outro que se sente estrangeiro em terra própria, requer conquista sem o esforço do desperdício e das energias inúteis, porque o amor apenas se instala e sobrevive da conquista diária, ou noturna, ou vice-versa, ou tudo misturado nos pequenos gestos da sedução seqüencial inadiável, que desperta a descoberta de que o um já habitava dentro do outro, mas que só percebe nesse ínterim da inter-intra-relação.
Esse outro, rebelde, você já percebeu, precisa ser siderado, recortado na ótica, no prisma da troca narcísica pendular a pontear a dualidade.
Quem se rende antes? Quais são os armistícios, cláusulas itinerantes a abrir caminhos na selva virgem que é o colocar-se a dois e conjugar esse verbo tão antigo, mas tão pouco praticado, que é o nós dois de cada dia, sem o qual a relação é sempre angústia da espera para um dos pares e para o outro a saga da procura sem fim. Deus colocou o Amor dentro do próprio homem, da mulher, para que eles olhassem mais para o interior de sim mesmos do que para o brilho das espécies divulgadas no repentismo contemporâneo. E nesse jogo é que acontece sempre o martírio do conflito, o calvário do silêncio humilhador, da separação indecorosa, da briga profana.
Como entender a traição, essa embebedação de químicas estrangeiras à nação supostamente soberana de dois seres, vasos comunicantes interdependentes. Como é possível não desvirtuar, a emoção original, quando esta é adulterada por outras, que no início podem até gerar o desconforto da culpa, mas que depois, pela repetição do ato e da mentira acaba por tornar-se verdade cotidiana aceitável? Como? E a troca de líquidos, e os vestígios emocionais, o descarrilamento da paixão que deveria ser como a fidelidade do casal de baleias, que se uma é atingida pelo arpão da morte inesperada, nunca mais a outra se acasala ou constitui relação.
Onde amor assim, doce rebelde? Como preencher esse vazio que nunca é completo? Me chamarás de louco, de visionário ou de transgressor. Não importa. Já me acostumei mesmo a viver pra lá da fronteira da normalidade, do igual.
Mas ainda assim, nesse restrito universo, amantes assim constituídos, esses gigantescos ponteiros sem memória, estarão sempre ditando novos compassos, novos vitrais, oceânicas novidades, perplexidades criativas que se multiplicam em heranças pós-modernas.
Pobre daquele que nunca sentir o desequilíbrio causado pelo amor visceral, dificilmente poderá dizer que valeu a pena ter vivido. Porque amor, com todos os seus ingredientes prazerosos ou sofredores, desnorteia, tira-nos do eixo e nos transforma em seres virtuais em direção a algo indefinido, muito subjetivo, indelével, mas com amplo espectro de realização, pois viver segundos enriquecidos por esse urânio sobrepõe a medíocre eternidade aparente.
Sozinhos somos um uno diferente, indivisível em nossas barbáries, somos apenas exegetas-egoístas da individualidade, consortes de solidões inadiadas.
Quando nos encontramos com o outro imaginado, o choque é inevitável: as coisas, as nossas partes, o tudo intocado, em nós, ganha outro sentido. Ao se instalar a interlocução, surgem as revelações ocasionais e ocasionadas na versatilidade da palavra em diálogo, do olhar incidental, do tato trocado na calada da noite e nas madrugadas desabridas, nos amanheceres matriarcais, nas pequenas construções erguidas uma só vez, de cada vez , dentro do outro e de si mesmo.
Norte? Ela diz que ainda não encontrou seu norte, bem sabendo que está no meio dele, que caiu em cheio no princípio de si mesma e, outra vez, quer estar de volta, sempre ao início do novo, de novo.
A parada mais próxima é a que leva ao precipício do saber, da novidade que virá inclemente, premente de sedes virginais, suavidades conversatórias, porque o humano sempre será o aprendiz contumaz de seu próprio caminho, olhado da janela de sua nave passageira.
Porém, ininterruptamente, nunca passará de ser o ser em caminho, interminável, do algo que não vem, ainda que siga os sinais desenhados por pais ou por mortos célebres, ou mesmo pelos vivos, esses descendentes que chegaram aqui remando de costas para o país que adotaram.
E assim vamos criando outras configurações, novas e frágeis fortalezas, diferentes recomeçares universais, microcosmos expostos na mesa de patologia, distendida entre um astro e um asteróide, mas compartilhados sempre pelo um e pelo outro em comunicação, por esses seres duais, em suas intimidades paradoxais.
Mas é o poeta, esse professor de liberdades aprisionadas na contradição do existir, sem poder olhar para trás, é que administrando a bendicção do sentir, revela que só podemos olhar o tempo e o aprendizado, caminhando de costas para a morte.
No fundo no fundo, sabemos que qualquer um gostaria de construir uma história com tudo isto: tintas de todas as cores, uma paleta, um pincel e um quadro em branco. A diferença vai ser como distinguir um ser verdadeiro de um vadio ou um vago que passa sob nossa janela e também a conjugação que fará de tudo isso. Mas isso já é probabilidade, porcentagem, circunstância, oportunidade... Como vamos saber quando vai acontecer ou se já aconteceu? Só mesmo vivendo, em perigo constante. E se eu viver toda minha vida sem encontrar isso, hás de perguntar? Mas esse é o ponto, essa é a interrogação.
Nesse corredor estreito em que se transforma, cada vez mais, a convivência humana, o exagero é aceito com naturalidade, a violência empurra seu limiar para muito além daquilo que os bárbaros praticavam com muito prazer, mas que hoje soam como ingenuidade de meninos, o troca-troca de parceiros ultrapassa as contas matemáticas, que no fim só amplia o campo da traição, torna-a artefato de consumo diário. Num terreno assim, encontrar um outro viscerado, é tarefa hercúlea nesse deserto contemporâneo em que se transformou a pólis-fera-jugular, esse tatami, esse ringue de gladiadores de verniz.
É por isso que ela se cala e ouve a si própria: de sua boca sai um hálito quente e umedecido de curiosidade, essa avidez insensata de tatear o novo, o desconhecido, o lá, o não sabido ainda, o sempre desenhado nos lábios do horizonte, misturando, nesse mister, beberagens, ervas, religiões, pós, beijos, óleos, sexo absoluto e a rebeldia.
Tudo isso pode ser impresso com as cores sobrenaturais, numa pintura que ainda será plástica.
Mas enfim, por fim, sobrevem o que os raros amantes querem é o ato siderado no telhado ocasional e depois da intimidade compartilhada, o descanso, o descaso para o mundo, o fechamento conquistado a dois nos lençóis da cumplicidade, depois de tudo o caos organizatório do próximo segundo.
Onde essa rebelde?

PRIMEIRA VEZ

PRIMEIRA VEZ

Ferriól Cabanas

Hoje me peguei pensando nas coisas importantes que já aconteceram:
O primeiro brinquedo inesquecível, o primeiro dia de aula, a primeira comunhão, o primeiro beijo, a primeira viagem, a primeira noite de amor, o primeiro poema, a imensidão do mar, o primeiro vôo, a formatura, o primeiro mergulho no desconhecido: a complexidade da existência.
A sensação do primeiro encontro com você faz renascer todas essas emoções. Porque sempre vamos estar atentos às situações essenciais e importantes de nossas vidas.
Tenho me preparado para começar uma nova vida, individualmente e também para viver com uma mulher, partner imprescindível para toda conquista humana. Diferente de outros tempos, hoje é possível imaginar, desenhar e lapidar um futuro melhor, pois a gente já tem noção da caminhada.
É por isso que consigo imaginar você em minha vida, em todas as suas nuances. A cumplicidade, os projetos pensado a dois, o sentimento se instalando, a confiança crescendo, a intimidade, a lealdade compartilhada, a fidelidade delicada, o orgasmo arrebatador, o silêncio denso do depois, o aconchego, a comidinha feita a dois, as coisas simples de um domingo familiar ao redor de uma mesa, de uma churrasqueira. Como é bom sonhar com tudo isso, sabendo que um dia desse vai ser real.
É assim que eu imagino você em minha vida.
Para isso venho me preparando. Sem que você jamais imaginasse tantos detalhes.
A maturidade traz um pouco mais de certezas, já sabemos que não temos muito mais tempo para errar. Isso nos assegura uma possibilidade maior de ser feliz de modo mais estável, pois o valor da continuidade tem o gosto de construir uma história que será revivida outra vez. Lá na velhice. Depois será fácil ficar na janela contemplando o mar ou o pôr do sol, sem precisar emitir nenhuma palavra, porque cada um saberá em que o outro está pensando, o que está sentindo.
Sei que tenho muitos defeitos, mas partir dos erros do passado, meus e de todas as pessoas que fizeram e fazem parte da minha constelação afetiva e da minha memória emocional. A partir disso venho construindo uma plataforma para lançar-me como ser humano mais integral, melhor, mais flexível, aprendiz mais acurado.
Mas mesmo assim hoje estou com o suor das mãos daqueles bandeirantes que ingressaram nas matas deste País gigante, com a mesma palpitação e intuição de que nele há pedra preciosa. Estou hoje com o brilho dos olhos daquele astronauta que se preparou a vida inteira para o vôo além das estrelas, como Américo Vespúcio na véspera de colocar os pés numa nova terra, como Santos Dumont se sentiu na hora precisa que antecipava seu primeiro vôo no 14 Bis. E também como o menino que vê o mar pela primeira vez.
Sei que a maioria das pessoas não se prepara para uma nova vida, uma vida a dois, com a clara consciência, com a visão e a missão de realmente acertar. Mas tenho certeza de que você, sim, está me compreendendo, porque envolve a sua vida também.
É assustador?! Sim. Mas é mais assustador não viver, não se preparar para viver o maior amor de uma vida. É mais fácil viver mornamente, ao sabor do vento de paixões descartáveis e voláteis. É fácil se acomodar num casamento, numa relação padronizada. É só não exigir muito um do outro e fingir um pouco todo dia e entrar na rotina. É só não crescer, não buscar a excelência, a reciclagem, a inauguração diária de recomeçar.
Há uma confusão a respeito do amor. A grande parte dos amantes o confunde com a paixão, que vem do francês, poison=poção. As pessoas “ingerem” essa poção e entram em estado de excitação espiritual, emocional, psíquica e químico-física. Quando acaba seu efeito sobrevém a frustração. E um fica olhando o outro com a sensação de “que estou fazendo aqui?” E saem, cada um para seu lado, buscando “uma nova paixão”. E assim, sucessivamente. Por isso se vê constantemente no dia-a-dia quando uma mulher que diz: “Não estou suficientemente apaixonada por ele a ponto de me casar”, mal sabendo que o amor já poderia ter se instalado em seu coração. Digo a mulher porque ela está mais avançada emocionalmente do que o homem, a maioria dos homens ainda é um adolescente para as coisas do amor verdadeiro e grandioso e sua maior confusão sempre vai para a cama. E quanto mais variedade tem, mais confusão gera no seu entorno. A mulher se prepara a vida inteira para o amor. E ela, muito mais do que homem está preparada e disposta a viver somente um amor. Sem cruzar químicas e alquimias.
O amor é sereno, o amor não é do outro, é privilégio, é algo que se compartilha, que se interage com o outro. Cada um tem o seu e é na sua soma que ele engrandece nossa existência, enquanto indivíduos e enquanto casal, não importando o status, podendo ser namorados, noivos, amantes, marido e mulher. O amor não é algo escandaloso, embora nos dias de hoje amar competentemente tornou-se raridade. Porque o nível de traição existente nos dias atuais virou coisa natural e ninguém mais vê como escândalo, já é cultural, como se fosse coisa prática, inofensiva e inodora.
Todo mundo quer viver um grande amor. Mas muito poucos são os que se preparam para isso. Não aproveitam o ato incidental de encontrar a pessoa da sua vida porque cada dois se encontra da melhor maneira, da mais singela até a mais esdrúxula, como foi o encontro de Salvador Dalí e sua Galina, a imortal Gala.
A história registra somente os amores notáveis e célebres, mas um grande amor também pode acontecer pelas teclas de um computador, porque o amor não é causal, mas a causa de tudo o que pode sobrevir depois. Amor é sentimento, por isso não importa como ele vem, como surge, mas como se instala, como é construído. A Internet é apenas mais uma possibilidade, igualzinho o amor de duas pessoas que moram na mesma rua. Um dia se olham diferentemente. Pronto! Vive l´amour!
Por outro lado é muita responsabilidade. Lógico e elementar. Ninguém tem consciência disso: de encontrar e construir o grande amor de sua vida. Mas se as pessoas prestassem um pouco de atenção para o que acontece consigo mesmas, talvez houvesse muito mais gente se amando verdadeiramente, com mais respeito, veneração e conseqüentemente, com mais realização, em todos os sentidos de suas vidas.
Platão afirmou que a última palavra de Sócrates foi “galo”. Na época achavam que era por causa de sua ética ímpar, que até o último suspiro preocupou-se em pagar alguma dívida, pois galo era uma moeda de sua época. Mas estudos mais recentes apontam que na verdade ele quis dizer que o galo anuncia um novo dia, uma nova alvorada, um novo tempo. Na verdade ele estava anunciando uma mudança radical no modo de pensar do ser humano.
Quem sabe se a vida não nos presenteou com um novo galo também. No alvorecer de um novo ano. Uma nova vida.
Sei como você sente. Compreendo você. Estamos plugados um no outro neste momento, nessa excitação sentimental diante de um iminente encontro, ainda que seja sentido só pelos dedos, mas a gente sabe que pode ser um ato histórico, evento único e de duração inimaginável.
Pode ser que não seja o esperado. Que não seja o grande amor. Mas não terá sido em vão. Pois é nesse exercício de se preparar, de tentar, de buscar, de sermos honestos afetivamente, primeiro conosco mesmo e depois com o outro é que estaremos avançando em direção de sermos melhores a cada dia. Com a certeza de que estamos mais próximos e que somos possíveis de uma felicidade que a maioria não viverá jamais.
É do risco da possibilidade de amar grandiosamente que podemos realizar isso com paixão.
Como missão.

DIÁRIO DAS LATITUDES

DIÁRIO DAS LATITUDES

Nesta noite quero preencher um buraco cuja aquisição não indica origem, espécie, latitude, nem longitude, que não apresenta nenhuma garantia e muito menos indicação de onde reclamar devolução. Um buraco que não me pertence, que vive comigo e que cria esta odisséia diária, repetição insofismável. No pouco tempo. No pouco espaço.
Quero, nesta noite bendicta, desenhar no peito um romance minimamente possível, nem que seja aquele de mocinha e bandido, em que ele morre nos braços dela no final, todo orgulhoso e feliz, porque seu fim teve uma nobre causa e a população agora o venera anualmente com flores e orações, pois morreu em defesa da honra e da liberdade de amar sem fronteira.
Quero registrar um pedido, nesta noite, que não foi programada nem por mim nem por você, mas da qual somos figurantes imprescindíveis, quero fazer um pedido para que você apareça em minha vida, de uma vez por todas, para que o amor possa se transformar em missão com toda a liturgia de uma aurora boreal. E assim se proceda a sua declaração formal, transformando esse amor em vírus cibernético, para que todos saibam da sua existência, em todas as partes deste mundo conhecido, para transformar o amor numa profissão de fé, estampada nas telas de todos os computadores deste habitat universal cada vez mais virtual, cada vez mais insensível, cada vez mais volátil.
Sei que você existe, que está neste momento imaginando a figura do homem que será seu pela última vez, para que cesse essa sua busca também. Pois é sabido que a mulher é mais possível para o amor: ela vem praticando esse exercício de amar desde que recebe sua primeira boneca. Diferente do menino, com seus brinquedos, ela coloca o amor ali, como se a boneca fosse já seu objeto psicanalítico. Talvez por isso seja mais avançada emocionalmente que o homem, que na maioria das vezes é um menino para o amor, confunde-o com o físico e seus canais hedonistas. A mulher pode amar uma vez só por toda sua vida. A química e a alquimia de amar e ser amada é suficiente para ela. Já lhe basta. Não quer experimentos. O homem sempre teima em fazer misturas, em seu trânsito da traição, cujo efeito geram estragos que duram uma vida inteira, de valor amargo, insosso, amorfo e inodoro. A mulher sabe que não basta ser só fiel, tem que haver lealdade.
Quero confessar: sim, sou personagem patético de mim mesmo, procurando entender porquê o amor é maior que a dor, por quê o amor se desenvolve só quando há sofrimento legítimo, sentido na carne e regado com o próprio sangue? Fico a divagar e a procurar respostas. Sem encontrar. E noite passa. A vida se esvai.
Por quê então Deus nos permite um sentimento assim? Não bastava a gente ser feliz e nada mais? Mas é muito difícil mesmo entender, pois Ele próprio permitiu seu Filho morrer por amor de uma humanidade que não está nem aí, que professa fé sem sentimento real, freqüenta igrejas por hábito ou pela sensação de fazer parte de um grupo que goza da promessa de ser salvo no último dia. Se nos esforçarmos a gente bem que consegue imaginar o que Ele passou enquanto mortal até Sua última hora. Sofrimento ali é o que não faltou e nem há de faltar nunca, pois os homens O pregam na cruz, diariamente, para nos lembrar que amor incondicional tem que doer de verdade e não figurativamente como no cinema ou na novela.
Mas vou seguir em frente porque você ainda nunca me disse eu te amo com tanta vocação, que eu até tenho medo de que os outros venham saber um dia e a chamem de louca e a levem de mim, aumentando ainda mais a minha própria loucura.
Vou continuar, sim, mergulhando fundo nesta busca, só porque o oito está contido na noite, em quase todas as línguas. Vou insistir porque imagino que você também quer viver seqüências perfeitas de frêmitos e fricções, gemidos e ardências, suspiros e aconchegos e beijos de mel, muitos beijos, com doces fios de saliva desemendáveis.
Vou permanecer em pé até que você chegue com sua risada-cristal e quebre todos os meus espelhos.
Mas por favor, venha logo porque minha vida se acaba inutilmente. Pois sem você não há sentido em nada e nem em tudo que tenha nome neste mundo todo.
Queria que você me dissesse, com a cabeça encostada em meu ombro direito, que as promessas de papel passado não são bulas com respostas geniais para as queixas mundanas, mas que se a gente não se cuida, não cuida do amor propriamente dito, as promessas se transformam sim, em balas na agulha deste tempo mais louco do que nós dois juntos.
Queria que você me ouvisse dizer, entre os ventos que lhe visitam, neste momento, que a distância nos une pela saudade absoluta do que ainda nem vivemos e nos iguala na carência incondicional de viver isso tudo.
Queria que você soubesse que meu coração suicida é bem capaz de parar o relógio só para gozar um pouco mais da eternidade que é imaginar um sorriso exclusivo que você tem guardado só para mim, e eu para você, depois de um dia inteiro de pressões da convivência obrigatória. Assim a gente olvida o momento cravejado de realidades brutais, mas que necessárias. Porque viver é muito perigoso mesmo, com já disse Guimarães Rosa.
Dizer também que não fui eu quem inventou a barbárie e a violência cada vez mais gratuitas, cada vez mais colossais, e o resultado disso é a perda de tantas vidas valiosas, embora sabendo que esses atos são inerentes a todo homem há muito tempo, que o homem já nasce como mal pronto dentro de si e são os pais, e depois a sociedade como um todo, é que vai adestrando o bem dentro de sua alma. Alguns não aprendem. O triste é que, cada vez mais esse mesmo mal já começa a seduzir a mulher também, pois agora ela já planeja e mata seus próprios pais com a frieza patológica dos criminosos imortais.
Nesta noite memorável, quero dizer aos que encomendam os crimes, que eles jamais poderiam imaginar um amor assim. Imaginar quando a gente se encontrar pela primeira vez. Nada mais será como antes, será melhor, em meu peito, em seu peito, e à nossa volta, pois jamais voltaremos a ser ou permitir ou produzir o menos, o medíocre, o paradoxal, o incoerente. Não. Nunca mais uma noite será parecida como esta, pois apesar das longitudes e latitudes que nos separam, sei que estamos pensando um no outro neste momento e olhando a mesma estrela.
Se os facínoras de toda espécie pensassem só uma vez num amor como esse, talvez desistissem de suas práticas hodiendas, pois se eles sentissem o amor que nós sentimos haveria menos dor e menos sofrimento, menos perdas, em todos os sentidos.
Queria, neste silêncio sepulcral, acordar os vizinhos e gritar que não somos compatíveis com os amores modernos e voláteis, com os amores rápidos e descartáveis da Internet, dos romances apregoados nos folhetins diários, dos amores vendidos sofregamente nas esquinas, daqueles comprados, com dinheiro ou com favor com todo seu séqüito de fáceis e vulgares prazeres. Queria sussurrar em cada ouvido, em cada consciência, que vale a pena viver um amor absoluto, sim.
Mas, sabe, o que mais quero é pedir que você me cale o verbo nascente em minha boca com um beijo bem dado e restaure o sorriso da alegria, ao tocar você, diariamente. E a partir dai não se separar mais, nunca mais e então levar uma vida cotidiana e cheia de rituais só nossos, e desse jeito acordar todos os dias de manhã e saber, só pelo perfume do corpo seu, que você sempre esteve ali toda minha e eu todo seu. E todo dia será dia de comemoração pelo nosso congresso espiritual, emocional, sentimental, carnal.
Porque depois de tudo não ligaremos mais para o que os outros possam pensar de nosso romantismo exagerado.
Pois é dessa ligação que tiraremos a energia suficiente para tornar realidade todos os seus sonhos, os meus sonhos antigos, que se transformarão em nossos. Pois juntos prepararemos a nossa missão.
No fundo-no-fundo, a maioria dos homens e mulheres está vivendo menos do que poderia ser, apenas imagina uma vida rica, achando que posse ou dinheiro os fariam felizes e realizados, mal sabendo que coisas e poderes se apossam deles muito mais e por isso mesmo estão sujeitos a precificar a lealdade, a amizade, a dignidade. Eles se esquecem que estão queimando em praça pública, a toda hora, em fogueiras colossais, o maior valor da vida: amar sem pedir nada em troca.
Queria perder a memória que teima imprimir sua imagem, que ainda não é minha, em cada piscada destes olhos mortais, que me fazem percorrer a letra que salta para o papel, esta memória que não deveria condenar os traços seus na minha retina cansada de esperar há tanto tempo que nem sei mais exatamente quem sou ou como sou de modo tão banal ou distraído, porque vivo em permanente tensão da falta que você me faz.
Queria é contar para você, numa madrugada desabrida, do medo que tenho de ver o amor transformado em palavras vazias de realidade. A velocidade com que as pessoas se devoram nos dias de hoje, é maior que a possibilidade de um encontro no final de tarde para ver o pôr do sol, de mãos dadas, estando juntos os mais próximos possíveis.
É nessa hora que sinto a dimensão exata do que é o antigo desejo do homem de dominar o impossível. E eu que queria todo esse poder só para roçar meu cotovelo no seu cotovelo enquanto preparamos um jantar só para dois, enquanto tomamos um vinho num mar conquistado, mas que logo ficará revolto no lençol branco de um futuro a nosso alcance: o nosso amor pela primeira vez.
Só por isso morreria agora mesmo, e já partiria feliz, embora incompleto, pois se você me der a galáxia inteira do seu sentimento, minha vida passará a ter um universo inteiro de reciprocidade.
Se isso tudo já tivesse acontecido, se já tivéssemos vivido uma vida inteira a dois, creio que você também não se preocuparia mais em morrer, porque a existência passou a ter sentido. A partir daí não há mais distância e o tempo já não é mais tortura insuportável. Porque o gozo de viver a dois ameniza o calor que sobe pelas paredes internas da alma e os pecados já podem ser perdoados.
Mas o consolo é a possibilidade de se construir uma história de amor possível, só para mostrar à maioria, que não ama, que não amará assim jamais, uma maioria esmagadora que nunca saberá do amor, que é possível sim e que ele não foi inventado para satisfazer egos exigentes e exegetas de poderosos, celebridades e colunáveis.
A única atenuante desta breve iluminação noturna é saber que o sentimento raro é que nos confere pequenas eternidades diárias, vividas uma de cada vez, cada uma em seu instante preciso, sem que nunca acabe, pois o amor nos renova a cada segundo. Só, somente quem ama pode entender a dimensão criada entre esta noite e o impossível, do qual nos aproximamos sempre um pouco mais, sempre que se ame mais, até descobrir, totalmente, que já não se pode mais viver assim, você sem mim e eu sem você.
Para que esta noite bendita, benedicta, quase santa, seja completa, pronuncio o último desejo, quero você fique muito atenta nesta noite, para ouvir de meus lábios uma confissão derradeira: você é o amor da minha vida e eu sou o seu profeta.

Ferriól Cabanas
Março de 2005

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A TERRA É AZUL

A TERRA É AZUL

O primeiro passo do homem na Lua foi dado com um pé tamanho 41, na noite de 20 de julho de 1969. Quem calçava a bota azul, que pisou no velho astro pela primeira vez, era o astronauta norte-americano Neil Armstrong.
Todo mundo parou em frente à transmissão da televisão, em preto e branco, para ver Armstrong na Lua. De lá, ele proferiu a famosa frase: "Earth is blue".
Nessa época a população mundial era pouco mais que 3 bilhões.
Em muito pouco tempo as tecnologias humanas avançaram enormemente e já muito pouco resta daquele romantismo, uma vez que a Terra se tornou de uma fragilidade inimaginável.
Oitenta e seis bilhões de pessoas terão nascido e desaparecido até 2015. Todas elas, como nós, depositam sobre a face do Planeta não só seus restos mortais, mas todos os dejetos da curta mas devastadora trajetória humana.
Em 2050 seremos dez bilhões de terráqueos. A continuar na velocidade e voracidade atual com que consumimos a Terra, possivelmente ela mais terá nem essa cor maravilhosa que hoje a identifica.
E Deus queira que a frase do alto e de longe não seja: "Earth is black".
É de nossa responsabilidade inegociável e intransferível reverter esse processo em que a colocamos, desde os mais simples gestos até as grandes ações industrializadas.
Enquanto isso temos o maior prazer de vê-la.