quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

CARTA A UMA REBELDE

CARTA A UMA REBELDE

FERRIÓL CABANAS

Ela surge da circunstância mundana, como quem se pretende beduína errante, tubo de ensaio efervescente de si mesma.
Ávida degustadora a rebelde mergulha na quadratura de maior fluxo de novidades.
Seu rosto resplandecente, seu sorriso recortado no mistério por trás de si, seu olhar instintivo, pronto para o ataque ou para a fuga. Tudo se prepara para o salto felino da metáfora, do design léxico, do trampolim semiótico.
Como não devorar sua boca falando conversas, línguaviagem enviando mensagens, costurando significados e significantes: troca sintônica de sentidos igual às das peles humanas quando se tocam, como se as palavras ditas fossem dedos percorrendo corpos arrepiados de novidades inaugurais, que não se repetem jamais, como micro-cubos percorrendo poros sem nunca repetir o mesmo roteiro.
A rebelde aparece sob a fronde da árvore frutífera, como cítara de sons e sentidos tocados por uma pitonisa ressuscitada, como estrela dialogal recitando poemas inumeráveis frente ao espelho suspenso no tempo, emitindo sons intransferíveis e solitários, como pássaro interestelar a revelar códigos inacessíveis ao senso comum.
Mal ela sabe que sendo sina imperfeita, caminho de Samarra ou espada de Dâmocles, investe na tentativa de se desviar do encontro, reúne todas as suas armas, tais como facas de inteligência a brilhar em noite de estrelas, sensibilidade refletida na areia da praia que ela própria esqueceu o endereço, sagacidade solar iluminando compêndios. Mas que nada, a água sempre molhará.
Mas mesmo assim, ela caminha sobre os astros, pula sobre eles, brinca, olha para trás e enquanto segue, sorrindo, algas fluorescentes desprendem-se de seus pés, criando sua própria galáxia. A rebelde se diverte, gargalha para si mesma, cristalmente.
No fundo, no fundo, ela sabe. Tem a ciência de que a palavra quer dizer, quer contar, quer relatar coisas únicas, mas teima em querer vê-las, todas, reunidas num só conceito. Tem certeza de que a palavra é dádiva e prêmio, que a repetição e a procura sempre foram necessidades humanas imprescindíveis no dia-a-dia.
Ôh! Rebelde, então não é a palavra que constrói e destrói incessantemente.
- Quantas vezes você mesma ouviu seu próprio nome sendo pronunciado, falado, dito, ciciado, sussurrado, gritado?
- De quantas outras maneiras você espera que seu nome próprio seja anunciado, cravado, como pedra amolada, na memória emocional?
- Qual é a entonação de voz que permanecerá na sua velhice, na voz da paixão, do gozo, do lapso, do amor absoluto? Claro que as construções instantâneas são mais sedutoras, para quê castelos medievais se novos projetos de um world trade center futurista provocam mais mass media do que sentimento genuíno, gerado gratuitamente em algum lugar comum, cuja fonte é inesgotável, só que cada vez mais para muito poucos?
- Sentimento perene, amor volátil ou conflito inegociável do medo de amar entregando-se dia e noite, noite e dia?

No entanto a fênix moderna sempre surge rejuvenescida, usando a palavra como veículo condutor que nos transforma no que somos, desde o primeiro choro, das frases acalentadoras da mamãe proverbial, desde o grito primal até o gemido perdido no futuro.
Somos palavras comunicantes, signos rotatórios em diversão, em diversificação de arranjos, que se repetem em vão, nas torres de babel parabolizadas pelo desejo.
É a palavra, nobre rebelde, que faz com que o futuro seja inatingível, mas também é o verbo que gera a rebelião original contra o medíocre, o médio, o menos é essa articulação signica que trabalha contra as reconstruções de eus mais ou menos irrecuperáveis.
Voraz, a rebelde, translúcida, ouve. Identifica, colhe a palavra, come-a, interpreta-a, captura as virgens e vira-as de cabeça para baixo, sugando-lhes o conceito, o sentido. Depois cai, com sanha, sobre as desconhecidas, como leoa em dia de caça: sangra-as com a sede de querer compreender a vida pelo filtro de uma só entonação de um vocábulo.
Essa especialidade seduz quem está em sua circunferência cotidiana do amor escasso amor das metrópoles. Afinal, quem arde na mesma fornalha, indiferentemente do tempo, da geografia, são dúplices, cúmplices de um vocabulário extinto, apenas dois a se abraçarem no deserto da pólis, esse ambiente que se oferece mercenário aos procurantes do consumo diário: gentes, shoppings, notícias, Internet, sexos transeuntes, conceitos, coisas, gens, vírus, sangues, gêneses e todas as fúteis e vazias insaciedades que os acompanharão até as outras estrelas, se até lá não perceberem que ninguém muda, apenas melhora a partir do conhecimento, do saber, do errante ato de cair e levantar-se sabendo que vai cair de novo e de novo. Mas os dúplices se levantam mais felizes, mais completos.
Andarilhos pescadores de sinais, eles se encontraram no acaso, no caminho da surpresa, sob o pé de uma árvore existencial, que resiste às seduções matutinas dos deuses engomados do glamour, da posse ostensiva, do regurgitar das colunas sociais, já que destino mesmo não se discute e não se burla, mas quem tenta, se desorienta.
E nessa circunstância constróem o ficar verdadeiro, herdando tudo que veio antes: o norte dos pais, amigos, vizinhos, amantes, amados, viagens, línguas, mestres, religiões, ateus, hereges, sacrílegos.
Tudo faz a rebelde ficar verdadeira e nesse afã, erra muitas vezes a direção para onde queria ir: exatamente o ser diferente dos outros, da maioria que vive nessa jaula social disfarçada de paraíso.
Mas ela se reveste de armaduras modernas na busca do amor.
Pouco a pouco descobre que o outro refere, é o contra-plano necessário para organizar as linhas mestras das próprias conquistas individuais, é ele que argumenta, amarra conceitos, alinha pretéritos, contra-argumenta, serve à interlocução, essa indiscreta paixão desoriental. Tudo e sempre com o amor incondicional como plataforma e complemento para todos os vazios subjacentes.
Qual a finalidade da recente antropofagia contemporânea, rebelde, senão o suicídio do imaginário, o desgoverno do imutável abecedário?
Quando pensamos em controlar o norte, crendo-nos onipotentes e gerentes do nosso próprio amanhã, ah!ah!ah!, damos de cara com Deus a nos olhar de soslaio e rir de nossos esforços inúteis, porque Ele já sabe, de antemão, através do eterno exercício de observar a ginástica do homem, abraçado aos séculos, que o resultado é sempre o mesmo, só existe um fim: o ensimesmado gesto ensaiado no corte final da sua eminente extinção, de seu rastro de pólvora sem meio, só começo e fim. Porém quem quer se aprofundar, saber, discutir tudo isso?
Grita, rebelde, pode gritar à vontade, ninguém vai ouvir mesmo. Melhor é entrar logo no segundo ato.
O amor é difícil. Raro. Para poucos. Porque o exercício pleno do amor, do complexo amor, precisa do anteparo: o outro, o objeto para onde emanar o sentimento, que prescinde da sinergia propulsora para a realização de coisas grandiosas, ainda que seja construir monumentos interiores só para os olhos do ser amado, o ser que sabe da necessidade de uma plataforma terapêutica para a elaboração das diárias dores mundanas, o outro que funciona como ouvidos-oráculo das diuturnas queixas humanas, que a todos transforma em ingênuos infantes diante de um mundo patético, repleto da arte do inutensílio.
Engraçado, o outro que a gente quer encontrar é sempre um desconhecido, que, sem ser esperado, cruza a linha do nosso território sem pedir licença, não nos pertence, porém começa a fazer parte do nosso diálogo interior, da fileira de pensamentos que viajam a seu encontro. Esse outro que se sente estrangeiro em terra própria, requer conquista sem o esforço do desperdício e das energias inúteis, porque o amor apenas se instala e sobrevive da conquista diária, ou noturna, ou vice-versa, ou tudo misturado nos pequenos gestos da sedução seqüencial inadiável, que desperta a descoberta de que o um já habitava dentro do outro, mas que só percebe nesse ínterim da inter-intra-relação.
Esse outro, rebelde, você já percebeu, precisa ser siderado, recortado na ótica, no prisma da troca narcísica pendular a pontear a dualidade.
Quem se rende antes? Quais são os armistícios, cláusulas itinerantes a abrir caminhos na selva virgem que é o colocar-se a dois e conjugar esse verbo tão antigo, mas tão pouco praticado, que é o nós dois de cada dia, sem o qual a relação é sempre angústia da espera para um dos pares e para o outro a saga da procura sem fim. Deus colocou o Amor dentro do próprio homem, da mulher, para que eles olhassem mais para o interior de sim mesmos do que para o brilho das espécies divulgadas no repentismo contemporâneo. E nesse jogo é que acontece sempre o martírio do conflito, o calvário do silêncio humilhador, da separação indecorosa, da briga profana.
Como entender a traição, essa embebedação de químicas estrangeiras à nação supostamente soberana de dois seres, vasos comunicantes interdependentes. Como é possível não desvirtuar, a emoção original, quando esta é adulterada por outras, que no início podem até gerar o desconforto da culpa, mas que depois, pela repetição do ato e da mentira acaba por tornar-se verdade cotidiana aceitável? Como? E a troca de líquidos, e os vestígios emocionais, o descarrilamento da paixão que deveria ser como a fidelidade do casal de baleias, que se uma é atingida pelo arpão da morte inesperada, nunca mais a outra se acasala ou constitui relação.
Onde amor assim, doce rebelde? Como preencher esse vazio que nunca é completo? Me chamarás de louco, de visionário ou de transgressor. Não importa. Já me acostumei mesmo a viver pra lá da fronteira da normalidade, do igual.
Mas ainda assim, nesse restrito universo, amantes assim constituídos, esses gigantescos ponteiros sem memória, estarão sempre ditando novos compassos, novos vitrais, oceânicas novidades, perplexidades criativas que se multiplicam em heranças pós-modernas.
Pobre daquele que nunca sentir o desequilíbrio causado pelo amor visceral, dificilmente poderá dizer que valeu a pena ter vivido. Porque amor, com todos os seus ingredientes prazerosos ou sofredores, desnorteia, tira-nos do eixo e nos transforma em seres virtuais em direção a algo indefinido, muito subjetivo, indelével, mas com amplo espectro de realização, pois viver segundos enriquecidos por esse urânio sobrepõe a medíocre eternidade aparente.
Sozinhos somos um uno diferente, indivisível em nossas barbáries, somos apenas exegetas-egoístas da individualidade, consortes de solidões inadiadas.
Quando nos encontramos com o outro imaginado, o choque é inevitável: as coisas, as nossas partes, o tudo intocado, em nós, ganha outro sentido. Ao se instalar a interlocução, surgem as revelações ocasionais e ocasionadas na versatilidade da palavra em diálogo, do olhar incidental, do tato trocado na calada da noite e nas madrugadas desabridas, nos amanheceres matriarcais, nas pequenas construções erguidas uma só vez, de cada vez , dentro do outro e de si mesmo.
Norte? Ela diz que ainda não encontrou seu norte, bem sabendo que está no meio dele, que caiu em cheio no princípio de si mesma e, outra vez, quer estar de volta, sempre ao início do novo, de novo.
A parada mais próxima é a que leva ao precipício do saber, da novidade que virá inclemente, premente de sedes virginais, suavidades conversatórias, porque o humano sempre será o aprendiz contumaz de seu próprio caminho, olhado da janela de sua nave passageira.
Porém, ininterruptamente, nunca passará de ser o ser em caminho, interminável, do algo que não vem, ainda que siga os sinais desenhados por pais ou por mortos célebres, ou mesmo pelos vivos, esses descendentes que chegaram aqui remando de costas para o país que adotaram.
E assim vamos criando outras configurações, novas e frágeis fortalezas, diferentes recomeçares universais, microcosmos expostos na mesa de patologia, distendida entre um astro e um asteróide, mas compartilhados sempre pelo um e pelo outro em comunicação, por esses seres duais, em suas intimidades paradoxais.
Mas é o poeta, esse professor de liberdades aprisionadas na contradição do existir, sem poder olhar para trás, é que administrando a bendicção do sentir, revela que só podemos olhar o tempo e o aprendizado, caminhando de costas para a morte.
No fundo no fundo, sabemos que qualquer um gostaria de construir uma história com tudo isto: tintas de todas as cores, uma paleta, um pincel e um quadro em branco. A diferença vai ser como distinguir um ser verdadeiro de um vadio ou um vago que passa sob nossa janela e também a conjugação que fará de tudo isso. Mas isso já é probabilidade, porcentagem, circunstância, oportunidade... Como vamos saber quando vai acontecer ou se já aconteceu? Só mesmo vivendo, em perigo constante. E se eu viver toda minha vida sem encontrar isso, hás de perguntar? Mas esse é o ponto, essa é a interrogação.
Nesse corredor estreito em que se transforma, cada vez mais, a convivência humana, o exagero é aceito com naturalidade, a violência empurra seu limiar para muito além daquilo que os bárbaros praticavam com muito prazer, mas que hoje soam como ingenuidade de meninos, o troca-troca de parceiros ultrapassa as contas matemáticas, que no fim só amplia o campo da traição, torna-a artefato de consumo diário. Num terreno assim, encontrar um outro viscerado, é tarefa hercúlea nesse deserto contemporâneo em que se transformou a pólis-fera-jugular, esse tatami, esse ringue de gladiadores de verniz.
É por isso que ela se cala e ouve a si própria: de sua boca sai um hálito quente e umedecido de curiosidade, essa avidez insensata de tatear o novo, o desconhecido, o lá, o não sabido ainda, o sempre desenhado nos lábios do horizonte, misturando, nesse mister, beberagens, ervas, religiões, pós, beijos, óleos, sexo absoluto e a rebeldia.
Tudo isso pode ser impresso com as cores sobrenaturais, numa pintura que ainda será plástica.
Mas enfim, por fim, sobrevem o que os raros amantes querem é o ato siderado no telhado ocasional e depois da intimidade compartilhada, o descanso, o descaso para o mundo, o fechamento conquistado a dois nos lençóis da cumplicidade, depois de tudo o caos organizatório do próximo segundo.
Onde essa rebelde?

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