quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O LADRÃO DE LIVROS

O Ladrão de Livros

Ferriól Cabanas

Ao abrir a porta, Salouste Ferró deixava entrever fileiras incontáveis de livros, prestimosamente acomodados em prateleiras de sua biblioteca alexandrínica, edições de autores os mais reconhecidos da literatura brasileira e universal, pelos quais nunca havia pago um tostão sequer.
Entrava e, em seguida, trancava-se misteriosamente.
As dimensões físicas do ambiente denunciavam, perfeitamente, o quanto ele se dedicava à sua prospecção compulsiva. Revelavam também o tamanho da casa onde vivia sozinho e solitário.
Todos que o conheciam suspeitavam do excessivo cuidado com que protegia seus compêndios. Porém nunca ninguém nada descobrira.
Nenhuma pessoa, exceto ele e seu cachorro Rubi, adentrava naquele sacrário. Nem mesmo à empregada permitia o acesso, encarregando-se ele mesmo da limpeza da biblioteca, como forma de manter todo ser estranho distante daquele ambiente que tanto protegia.

O descendente de catalãos cultivava maneira peculiar de ler cada um dos livros que vinha colecionando ao longo dos anos, logo depois que se formara em Direito Penal. O exemplar tinha que, necessariamente, ter pertencido à pessoa letrada e intelectualizada, quanto mais cultura tivesse, maior o prazer de sua leitura. A obra deveria ter passado pelas mãos de um leitor definido, pois para Salouste era extremamente prazeroso percorrer o mesmo caminho que outros olhos já haviam realizado no texto, as frases sublinhadas pelo antigo proprietário, as anotações feitas nas margens, que ali figuravam como totens invasores carregados de perversidade, que se transformavam em fontes de frêmitos para o espírito daquele Promotor de Justiça. Dali extraía orgasmos pupilares, um oceano homérico que o leitor, antes dele, havia mergulhado.
Salouste era um bibliófilo, sabia tudo sobre livros, desde a antigüidade até aos dias atuais, quando livros são transportados, de um lado para outro do planeta, pela internet ou num disquete. Dirigia sua leitura para os assuntos de sua prioridade, lia o que acrescentasse valor a seu livre pensar. Estudara a Bíblia, o Alcorão, a Torá, o Talmude, o Tao. Mantinha assinaturas de revistas especializadas, cujas resenhas lhe antecipavam a seleção de suas próximas aquisições. Versado em semiologia, etmologia e semântica, incursionou no campo das línguas estrangeiras, das quais dominava dezenove, entre elas várias mortas como o latim, o grego, o tocariano e o sânscrito.
Tornou-se um mestre da palavra: o puro diletantismo o levou a estudar, formalmente, fraseologia, oratória, filologia, neurolingüística, só para aquilatar seu império, para potencializar ainda mais seu poder de persuasão. Daí que falar, escrever, declamar ou discursar lhe era indistinto: em tudo se saía como um virtuose da palavra. Suas próprias publicações incluíam livros de poesia, conto, romance, ensaio, críticas e traduções.
Ferró, habilmente, havia construído um círculo de relacionamento com outras fontes produtoras de arte, como vasos comunicantes, porém nunca permitira que ninguém adentrasse seu território proibido: a biblioteca. Apesar do enorme sucesso silencioso que fazia com as mulheres, com nenhuma estabelecera uma relação duradoura, pois considerava a curiosidade e a propaganda boca-a-boca feminina um excesso que poderia colocar em risco seu segredo. Muito jovem ainda decidira pelo celibato, embora algumas mulheres insistissem na possibilidade matrimonial, que vez por outra rondava seu cotidiano. No entanto, seu casamento com os livros e, principalmente com o modus operandi de possuí-los era mais forte.
Amiúde recebia convites para escrever artigos, resenhas, críticas e outras interferências, como proferir palestras, seminários literários sobre este ou aquele autor universal, rotina à qual se dedicava com muito afinco. Logicamente era muito requisitado para as reuniões culturais e sociais, mas sua predileção eram os convites para festas ou comemorações familiares nas residências de pessoas cultas, letradas, respeitadas em suas áreas de atuação, principalmente aquelas que publicavam livros, tanto autores quanto editores, pois ali residia o cenário principal de sua atividade desvirtuada.
Era, via de regra nesse momento que elegia sua vítima. Avaliava-a a partir de seu contexto social, cultural, familiar e profissional. Muito contava o modo de falar, a capacidade de síntese, as citações das quais se utilizava em suas refregas vocabulares. Enquanto a vítima possível falava, deduzia-lhe a influência de determinado autor, a inferência que um outro, recém lançado, lhe marcara o território virtual da memória. Através do discurso da vítima, Salouste depreendia que livros lera no passado, no presente e dava-se ao luxo de prever que tipo de leitura ainda faria no futuro, inclusive aqueles que nem haviam sido escritos ainda, tamanha era a elasticidade de sua lógica, mas para os quais o magistrado já reservara um lugar em meio à sua coleção errante.
O palco para o exercício de sua atividade subterrânea, era também as livrarias, sebos, hall de editoras, sessões de autógrafos de autores consagrados, vernissages e ainda num lugar pouco provável, mas não impossível, de se encontrar um bom leitor, como o metrô, do qual às vezes se utilizava para ir ao Fórum, onde exercia, com estilo irretratável e brilhante, a promotoria pública de pequenos delitos.
No entanto, era mesmo nas livrarias que detectava o alvo para seu crime perfeito. Achava que nunca seria descoberto, essa hipótese partia do princípio que um livro roubado, de uma pessoa, não configurava exatamente um crime, que ninguém iria a uma Delegacia só para registrar o furto qualificado de um objeto como esse.
Sabendo de antemão qual seria sua próxima “aquisição” entrava em uma Livraria e ficava por ali como quem não quer nada, folheando livros que jamais iria comprar, enquanto aguardava a chegada da vítima premente.
Ela entrava no recinto e encaminhava-se, sem titubear ou perguntar ao vendedor, à estante específica, tomava do volume e procedia o pagamento no caixa, sempre observada pelo nosso ladrão que a tudo atentava. Incontinente, saía no encalço do comprador e, sem se fazer notar, seguia-o até que aportasse em seu destino domiciliar.
Agora, em poder dessa informação mais importante: o endereço do incauto, era muito fácil saber-lhe o nome, a profissão, o local de trabalho, estado civil, antecedentes, grau de relacionamento social, intelectual, bancário ou comercial. Para isso utilizava-se de um site restrito a que tinha acesso como Promotor de Justiça. Assim construía um dossiê completo para ordenar seus movimentos fortuitos.
Por vários dias dedicava-se a mapear toda a afluência, o trânsito geográfico e social os hábitos, bares e restaurantes que a vítima freqüentava que tipo de filmes assistia os estilos de festas que gostava. Enquanto isso seu próximo futuro livro já havia sido desvirginado.
O passo seguinte seria arquitetar o plano de abordagem. Através de seus contatos criava determinada situação onde, fatalmente, seria apresentado à sua vítima, a qual, invariavelmente, sucumbia à verve sedutora de seu algoz, à maestria com que ele reproduzia em suas orações, todo seu saber livresco. Era o canto de sereia que faltava para que caísse na refinada trama que lhe fora tecida.
Agora era uma questão de tempo. Mais dia ou menos dia um convite seria estendido ao engenhoso meliante para que participasse de uma reunião festiva em sua casa.
Salouste aceitava, lisonjeado, o convite, chave mestra para atingir seus desígnios, mas já prevendo arrebatar o objeto de seu lapidado desejo, sem revelar qualquer sinal da pretensão criminosa subjacente.
No dia marcado, comparecia à casa da vítima e participaria, com desenvoltura comedida, da festa regada a líquidos dionisíacos, acepipes universais e das intermináveis batalhas dialéticas, apologéticas, recheadas de réplicas, tréplicas apaixonadas. Esse era o momento em que nosso representante do alheio melhor realizava suas ostentações rasantes e arrasadoras, exibindo seus conhecimentos multiliterários e multilíngües, entremeados de detalhes biográficos curiosos e pitorescos de escritores famosos e de seus interlocutores de época.
A todos encantava. Para cada agrupamento inseria seu exército literal de palavras, alinhavando ora um ora outro autor e as abordagens que mantinham entre si, as similaridades entre as obras, demonstrando as conversações comunicantes que encerravam, independentemente da época em que foram escritas.
Sem perder de vista sua finalidade maior, a festa em seu apogeu, Ferró pressentia que seu objetivo sorrateiro estava entrando em ebulição. A prática o fazia saber o que ocorreria logo em seguida. Assim, o anfitrião o chamava para mostrar-lhe sua biblioteca, e, orgulhoso, desdobrava-se em mostrar, apontar, manusear, exibir os mais variados livros, edições esgotadas ou mesmo apócrifas, obras raras, antigos manuscritos de línguas indo-européias extintas como o sânscrito-védico, o frésio ou, o prácrito. O gentil hostess empolgado com a atenção especialíssima do furtador oculto, recitava trechos de poetas imortais e gênios da palavra escrita.
Salouste comungava, sinceramente, embevecido, de tudo aquilo, pois sentia-se em seu pleno habitat, porém sem deixar de infiltrar-se no sulco de sua matreira intenção: o livro que a vítima havia comprado e lido, o qual estava prestes a ser transferido para sua posse. Sua metodologia subterrânea de surrupiar obras aflorava como um mapa muito bem arquitetado que ele desdobrava em seu genial cérebro. No exato momento em que o anfitrião se esticava inteiro, sobre a escada, para alcançar um palímpsesto egípicio, concretiza seu intento indecoroso, com movimentos precisos e prestidigitados.
Palimpsesto na mão, o catalão compartilhava com a vítima seu conhecimento, explicando-lhe que dois textos haviam sido ali escritos anteriormente e que foram raspados, para receber um terceiro e definitivo, era a maneira que as antigas civilizações encontravam para reutilizar pergaminhos, devido à sua extrema escassez na época.
Salouste explicou a possibilidade de se chegar às escritas anteriores, através de técnicas especiais, por meio de fotografia, com o emprego de raios infra-vermelho, ultravioleta ou luz fluorescente e, assim, se ter o acesso ao texto de alguém que, distante tantos séculos, que bem poderia ter sido um eminente escritor, um filósofo ou um dedicado contador que apagava tantas vezes quanto fossem necessárias os números já prescindíveis de seus balanços, para inserir novos, mal sabendo que o protótipo do papel, onde escrevera, chegaria tão longe no tempo. A vítima, embasbacada, diante de tal erudição, nem percebia os movimentos de seu interlocutor, porém mais uma obra lhe estava assegurada.
O magistrado, agora em poder de seu objeto, concluía o desfile de seus conhecimentos, sem cometer nenhum deslize que ferisse a suscetibilidade ou o curso natural do evento social ao qual era convidado. Despedia-se dos convivas e do anfitrião com muita elegância e partia com a certeza de que muitos dos presentes também o convidariam para futuras festas em suas residências, sabedor que era da vaidade humana. Desta forma seu território de possibilidades se ampliava cada vez mais, dando-lhe a certeza de que sua contumácia iria continuar proliferando a seu bel prazer.
Confirmava-se o fascínio irrefreável que o ladrão de livros exercia naqueles que se compraziam dos momentos emanados de sua turris ebúrnea, fonte divisória do saber e da ignorância.
Já refestelado em sua biblioteca, o Promotor de Justiça procedia a catalogação do volume precioso, ordenava uma breve biografia do antigo proprietário, local e data do ato, em que circunstância se dera, quais as dificuldades encontradas, quais as futuras vítimas presentes no evento, além de organizar uma seleção bibliográfica para suas futuras aquisições.
Finalmente, Salouste tomava do livro, afagava-o, percebia-lhe a textura das páginas, avaliava a gramatura, o tipo e a origem do papel utilizado, o cheiro da tinta, o peso, a técnica encadernatória, a tipologia adotada, o autor da capa e do projeto gráfico, a ficha catalográfica, a editora que o havia publicado e a dedicatória do autor. Tudo isso era minuciosamente consumido no livro, para só então iniciar a primeira leitura, o que fazia com sofreguidão e depois sim, sobrevinha uma outra mais ponderada, calculada, quase fria. É quando passava a apreciar cada palavra, cada sentido, a etmologia, as conotações, denotações, associações, os novos vocábulos, seu uso, pertinência semiológica e todas as inflexões sintáticas que o texto esconde ao senso comum. A tudo ia absorvendo, incorporando, como uma anaconda ao engolir o alimento que, pouco a pouco, também se transformava em serpente.
Impregnava-se todo, do todo que era aquele livro, recém furtado, para reproduzi-lo em seu discurso encantador e encantatório, arma de precisão para a multiplicação de seus próximos delitos.
No dia seguinte, após mais uma noite criminal, envolvido nas atividades ordinárias do café da manhã, da leitura de jornais e do preparar-se para o trabalho, mal percebeu o toque da campainha. A empregada atendeu à porta e em seguida comunicou ao Promotor que dois homens estavam à sua procura.
Uma longínqua suspeita, em frações de segundos, explode na mente de Salouste Ferró, mas sua onipotência e a crença de que sua prática jamais seria punida faz com que descarte qualquer ligação entre os visitantes e seus pequenos delitos.

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