quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

DIÁRIO DAS LATITUDES

DIÁRIO DAS LATITUDES

Nesta noite quero preencher um buraco cuja aquisição não indica origem, espécie, latitude, nem longitude, que não apresenta nenhuma garantia e muito menos indicação de onde reclamar devolução. Um buraco que não me pertence, que vive comigo e que cria esta odisséia diária, repetição insofismável. No pouco tempo. No pouco espaço.
Quero, nesta noite bendicta, desenhar no peito um romance minimamente possível, nem que seja aquele de mocinha e bandido, em que ele morre nos braços dela no final, todo orgulhoso e feliz, porque seu fim teve uma nobre causa e a população agora o venera anualmente com flores e orações, pois morreu em defesa da honra e da liberdade de amar sem fronteira.
Quero registrar um pedido, nesta noite, que não foi programada nem por mim nem por você, mas da qual somos figurantes imprescindíveis, quero fazer um pedido para que você apareça em minha vida, de uma vez por todas, para que o amor possa se transformar em missão com toda a liturgia de uma aurora boreal. E assim se proceda a sua declaração formal, transformando esse amor em vírus cibernético, para que todos saibam da sua existência, em todas as partes deste mundo conhecido, para transformar o amor numa profissão de fé, estampada nas telas de todos os computadores deste habitat universal cada vez mais virtual, cada vez mais insensível, cada vez mais volátil.
Sei que você existe, que está neste momento imaginando a figura do homem que será seu pela última vez, para que cesse essa sua busca também. Pois é sabido que a mulher é mais possível para o amor: ela vem praticando esse exercício de amar desde que recebe sua primeira boneca. Diferente do menino, com seus brinquedos, ela coloca o amor ali, como se a boneca fosse já seu objeto psicanalítico. Talvez por isso seja mais avançada emocionalmente que o homem, que na maioria das vezes é um menino para o amor, confunde-o com o físico e seus canais hedonistas. A mulher pode amar uma vez só por toda sua vida. A química e a alquimia de amar e ser amada é suficiente para ela. Já lhe basta. Não quer experimentos. O homem sempre teima em fazer misturas, em seu trânsito da traição, cujo efeito geram estragos que duram uma vida inteira, de valor amargo, insosso, amorfo e inodoro. A mulher sabe que não basta ser só fiel, tem que haver lealdade.
Quero confessar: sim, sou personagem patético de mim mesmo, procurando entender porquê o amor é maior que a dor, por quê o amor se desenvolve só quando há sofrimento legítimo, sentido na carne e regado com o próprio sangue? Fico a divagar e a procurar respostas. Sem encontrar. E noite passa. A vida se esvai.
Por quê então Deus nos permite um sentimento assim? Não bastava a gente ser feliz e nada mais? Mas é muito difícil mesmo entender, pois Ele próprio permitiu seu Filho morrer por amor de uma humanidade que não está nem aí, que professa fé sem sentimento real, freqüenta igrejas por hábito ou pela sensação de fazer parte de um grupo que goza da promessa de ser salvo no último dia. Se nos esforçarmos a gente bem que consegue imaginar o que Ele passou enquanto mortal até Sua última hora. Sofrimento ali é o que não faltou e nem há de faltar nunca, pois os homens O pregam na cruz, diariamente, para nos lembrar que amor incondicional tem que doer de verdade e não figurativamente como no cinema ou na novela.
Mas vou seguir em frente porque você ainda nunca me disse eu te amo com tanta vocação, que eu até tenho medo de que os outros venham saber um dia e a chamem de louca e a levem de mim, aumentando ainda mais a minha própria loucura.
Vou continuar, sim, mergulhando fundo nesta busca, só porque o oito está contido na noite, em quase todas as línguas. Vou insistir porque imagino que você também quer viver seqüências perfeitas de frêmitos e fricções, gemidos e ardências, suspiros e aconchegos e beijos de mel, muitos beijos, com doces fios de saliva desemendáveis.
Vou permanecer em pé até que você chegue com sua risada-cristal e quebre todos os meus espelhos.
Mas por favor, venha logo porque minha vida se acaba inutilmente. Pois sem você não há sentido em nada e nem em tudo que tenha nome neste mundo todo.
Queria que você me dissesse, com a cabeça encostada em meu ombro direito, que as promessas de papel passado não são bulas com respostas geniais para as queixas mundanas, mas que se a gente não se cuida, não cuida do amor propriamente dito, as promessas se transformam sim, em balas na agulha deste tempo mais louco do que nós dois juntos.
Queria que você me ouvisse dizer, entre os ventos que lhe visitam, neste momento, que a distância nos une pela saudade absoluta do que ainda nem vivemos e nos iguala na carência incondicional de viver isso tudo.
Queria que você soubesse que meu coração suicida é bem capaz de parar o relógio só para gozar um pouco mais da eternidade que é imaginar um sorriso exclusivo que você tem guardado só para mim, e eu para você, depois de um dia inteiro de pressões da convivência obrigatória. Assim a gente olvida o momento cravejado de realidades brutais, mas que necessárias. Porque viver é muito perigoso mesmo, com já disse Guimarães Rosa.
Dizer também que não fui eu quem inventou a barbárie e a violência cada vez mais gratuitas, cada vez mais colossais, e o resultado disso é a perda de tantas vidas valiosas, embora sabendo que esses atos são inerentes a todo homem há muito tempo, que o homem já nasce como mal pronto dentro de si e são os pais, e depois a sociedade como um todo, é que vai adestrando o bem dentro de sua alma. Alguns não aprendem. O triste é que, cada vez mais esse mesmo mal já começa a seduzir a mulher também, pois agora ela já planeja e mata seus próprios pais com a frieza patológica dos criminosos imortais.
Nesta noite memorável, quero dizer aos que encomendam os crimes, que eles jamais poderiam imaginar um amor assim. Imaginar quando a gente se encontrar pela primeira vez. Nada mais será como antes, será melhor, em meu peito, em seu peito, e à nossa volta, pois jamais voltaremos a ser ou permitir ou produzir o menos, o medíocre, o paradoxal, o incoerente. Não. Nunca mais uma noite será parecida como esta, pois apesar das longitudes e latitudes que nos separam, sei que estamos pensando um no outro neste momento e olhando a mesma estrela.
Se os facínoras de toda espécie pensassem só uma vez num amor como esse, talvez desistissem de suas práticas hodiendas, pois se eles sentissem o amor que nós sentimos haveria menos dor e menos sofrimento, menos perdas, em todos os sentidos.
Queria, neste silêncio sepulcral, acordar os vizinhos e gritar que não somos compatíveis com os amores modernos e voláteis, com os amores rápidos e descartáveis da Internet, dos romances apregoados nos folhetins diários, dos amores vendidos sofregamente nas esquinas, daqueles comprados, com dinheiro ou com favor com todo seu séqüito de fáceis e vulgares prazeres. Queria sussurrar em cada ouvido, em cada consciência, que vale a pena viver um amor absoluto, sim.
Mas, sabe, o que mais quero é pedir que você me cale o verbo nascente em minha boca com um beijo bem dado e restaure o sorriso da alegria, ao tocar você, diariamente. E a partir dai não se separar mais, nunca mais e então levar uma vida cotidiana e cheia de rituais só nossos, e desse jeito acordar todos os dias de manhã e saber, só pelo perfume do corpo seu, que você sempre esteve ali toda minha e eu todo seu. E todo dia será dia de comemoração pelo nosso congresso espiritual, emocional, sentimental, carnal.
Porque depois de tudo não ligaremos mais para o que os outros possam pensar de nosso romantismo exagerado.
Pois é dessa ligação que tiraremos a energia suficiente para tornar realidade todos os seus sonhos, os meus sonhos antigos, que se transformarão em nossos. Pois juntos prepararemos a nossa missão.
No fundo-no-fundo, a maioria dos homens e mulheres está vivendo menos do que poderia ser, apenas imagina uma vida rica, achando que posse ou dinheiro os fariam felizes e realizados, mal sabendo que coisas e poderes se apossam deles muito mais e por isso mesmo estão sujeitos a precificar a lealdade, a amizade, a dignidade. Eles se esquecem que estão queimando em praça pública, a toda hora, em fogueiras colossais, o maior valor da vida: amar sem pedir nada em troca.
Queria perder a memória que teima imprimir sua imagem, que ainda não é minha, em cada piscada destes olhos mortais, que me fazem percorrer a letra que salta para o papel, esta memória que não deveria condenar os traços seus na minha retina cansada de esperar há tanto tempo que nem sei mais exatamente quem sou ou como sou de modo tão banal ou distraído, porque vivo em permanente tensão da falta que você me faz.
Queria é contar para você, numa madrugada desabrida, do medo que tenho de ver o amor transformado em palavras vazias de realidade. A velocidade com que as pessoas se devoram nos dias de hoje, é maior que a possibilidade de um encontro no final de tarde para ver o pôr do sol, de mãos dadas, estando juntos os mais próximos possíveis.
É nessa hora que sinto a dimensão exata do que é o antigo desejo do homem de dominar o impossível. E eu que queria todo esse poder só para roçar meu cotovelo no seu cotovelo enquanto preparamos um jantar só para dois, enquanto tomamos um vinho num mar conquistado, mas que logo ficará revolto no lençol branco de um futuro a nosso alcance: o nosso amor pela primeira vez.
Só por isso morreria agora mesmo, e já partiria feliz, embora incompleto, pois se você me der a galáxia inteira do seu sentimento, minha vida passará a ter um universo inteiro de reciprocidade.
Se isso tudo já tivesse acontecido, se já tivéssemos vivido uma vida inteira a dois, creio que você também não se preocuparia mais em morrer, porque a existência passou a ter sentido. A partir daí não há mais distância e o tempo já não é mais tortura insuportável. Porque o gozo de viver a dois ameniza o calor que sobe pelas paredes internas da alma e os pecados já podem ser perdoados.
Mas o consolo é a possibilidade de se construir uma história de amor possível, só para mostrar à maioria, que não ama, que não amará assim jamais, uma maioria esmagadora que nunca saberá do amor, que é possível sim e que ele não foi inventado para satisfazer egos exigentes e exegetas de poderosos, celebridades e colunáveis.
A única atenuante desta breve iluminação noturna é saber que o sentimento raro é que nos confere pequenas eternidades diárias, vividas uma de cada vez, cada uma em seu instante preciso, sem que nunca acabe, pois o amor nos renova a cada segundo. Só, somente quem ama pode entender a dimensão criada entre esta noite e o impossível, do qual nos aproximamos sempre um pouco mais, sempre que se ame mais, até descobrir, totalmente, que já não se pode mais viver assim, você sem mim e eu sem você.
Para que esta noite bendita, benedicta, quase santa, seja completa, pronuncio o último desejo, quero você fique muito atenta nesta noite, para ouvir de meus lábios uma confissão derradeira: você é o amor da minha vida e eu sou o seu profeta.

Ferriól Cabanas
Março de 2005

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